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24 de dez. de 2012

Onírico 3 - parte 3


O aeroporto não estava lotado, mas a movimentação era bem estranha. Algumas dezenas de pessoas debruçadas em guichês de companhias aéreas asiáticas falavam alto, e outras corriam para as lojas de vendas de passagens. Aos poucos se espalhava a notícia, mas pelo jeito por enquanto tudo ainda se devia à divulgação da Radio Science e seus reflexos via internet.
Os quatro se enfiaram na pequena fila e logo foram atendidos, muito graças ao fato de que a avó de Elisa precisava de uma cadeira de rodas pra se locomover em longas distâncias, como aeroportos. No balcão, Elisa precisou explicar duas vezes que não, não haveria bagagem a ser despachada.
- Para a Rússia? - a moça repetiu, descrente. - Quatro pessoas? Sem bagagem?
- Sim. - interrompeu Peter. - Só bagagem de mão.
A moça fez uma cara estranha e estendeu os bilhetes de embarque para Elisa.
Naquele instante, as tvs do aeroporto todas passaram a transmitir o mesmo canal de notícias internacionais. E antes mesmo de ouvir o que o âncora ia começar a dizer, Elisa indicou a Peter o portão de embarque com um olhar.
- Mãe, vamos, rápido. - Elisa falou firme, sem gritar. Ela e Peter começaram imediatamente a correr, e a mãe os seguiu. Peter empurrava a cadeira de rodas em alta velocidade em direção ao portão de embarque.
Passaram pelo detector de metais sem controle algum: os agentes de segurança, e na verdade absolutamente todas as pessoas nos corredores e nas salas de embarque, tinham os olhos arregalados grudados nos monitores espalhados pelo aeroporto. O celular de Elisa tocou.
- Luciana? Sim, estamos vendo! Onde vocês estão? No aeroporto? O Carlos já está aí? Isso, Murmansk, é mais perto da base pra onde temos que ir. É, é um submarino, nós vamos tentar...
- É a Luciana? Eu quero falar com ela!
- Espera, mãe. Lu, eu não tenho como garantir o embarque no submarino, você tá entendendo? Não sou eu que vou decidir. Vocês têm chance, se chegarem a tempo. Já estamos na sala de embarque, mas ainda demora um pouco. Sejam rápidos. A partir de agora vai ser mais difícil.
Elisa passou o telefone pra mãe.
- Não demorem.
A mãe de Elisa chorava ao falar com a filha mais velha, enquanto o pânico se alastrava em ondas pelo aeroporto.
- Você tem mais dinheiro? - Peter perguntou.
- Tenho. - Elisa pôs a mão no bolso - Pra quê?
Peter apontou uma loja de eletrônicos no free shop.
- Celulares de satélite. Ondas gigantes não chegam ao espaço.
Elisa olhou pra ele inundada pela certeza de aquele era o macho certo para o fim do mundo. E, talvez, para um recomeço.
- Baterias extras. - ela recomendou. Ele assentiu e saiu com os bolsos cheios de notas.
Elisa sentou numa cadeira ao lado da cadeira de rodas de sua avó e segurou a mão dela, enquanto olhava com olhar perdido a pista de aviões.
- Ele é bonito. - a avó comentou.
Elisa sorriu.
- Ele é mesmo. - concordou Elisa. Era só um bônus. Não era esse o critério.
- Onde você o achou?
- Pertinho do fim do mundo, vó. - as duas riram - Ele era garçom, até ontem à noite, no restaurante onde eu e a Luciana fomos com papai.
- Seu pai acreditou?
- Agora deve estar acreditando. - Elisa resmungou, contrariada - Espero que ele consiga levar a mulher dele pra algum lugar seguro. Se existir isso.
- Sempre foi um rapaz teimoso. - ela ainda chamava o pai de Elisa de rapaz... - Mas o seu, não. É inteligente e bom.
Peter voltou correndo.
- Consegui dois aparelhos, são caros demais. Não quis gastar todo o dinheiro, não sei se vamos precisar de mais. - estendeu para Elisa as caixinhas com os celulares e as baterias.
- Eu trouxe todas as minhas joias. - disse a avó, orgulhosa, dando dois tapinhas na bolsa.
Os dois riram.
- Vó, a senhora é um milagre. - Elisa beijou a mão da avó.
- Filhinha, eu não estou duvidando de nada, não tenho mais idade pra discutir essas coisas. Confio em você, e sei que você está fazendo um esforço pra me levar junto.
- É muito menor do que o esforço que eu teria que fazer pra deixá-la. - afirmou Elisa.
- Sei disso, e só por isso é que vim. Mas vou dizer uma coisa muito séria, e você vai me obedecer, Elisa.
- Eu vou.
- É você que tem que se salvar. Entendeu? Essa moça, sua amiga russa, ela está certa. Jovens. Terão mais chances e serão mais úteis.
- Sim. - Elisa respondeu.
- Mesmo sua mãe...
- Mamãe é medica. - Elisa já havia elaborado esse pensamento uns minutos antes. Se não houvesse nenhum médico entre os candidatos ao embarque, ela soltaria essa ideia.
- O critério é da moça russa. - a avó lembrou - Não crie expectativas.
Peter não tinha coragem de dizer o quanto a avó estava certa, para não ferir os sentimentos de Elisa, mas até ela própria sabia que a avó tinha razão. E também tinha medo de como a mãe de Elisa iria se comportar numa situação como essas. Sangue frio e praticidade não eram seu forte.
Com o rosto vermelho e úmido, a mãe devolveu o celular a Elisa. Sentou-se numa das cadeiras em frente a sua mãe, Elisa e Peter, olhou por alguns segundos para os três, e desviou o olhar para a pista de aviões. O avião em que embarcariam já estava pousado. Os funcionários do aeroporto estavam nervosos, a tripulação parecia apressada e de algum modo aliviada, provavelmente porque pelo menos estavam indo na direção certa. Voos para os Estados Unidos e outros pontos da América estavam sendo cancelados. Elisa tinha certeza de que, em breve, todos os aviões do mundo convergiriam em direção ao leste. Caos.
Peter estava atento à tripulação do voo.
- Eles vão acabar adiantando esse voo. - levantou-se e foi falar com uma moça que olhava pra todos os lados perto da porta de vidro. Poucos minutos depois, fez um sinal para Elisa.
- Vem! - ele disse baixo, gesticulando.
Elisa empurrou a cadeira da avó pelo corredor do finger, seguida pela mãe, largando os cartões de embarque no balcão. A moça nem conferiu os demais, depois de olhar o de Peter. Ele rapidamente tomou a avó de Elisa no colo e levou-a para dentro do avião, dando passos rápidos e largos. Primeira fila.
- Sentem as três juntas. Eu fico deste lado.
Os olhos de Elisa ficaram imediatamente aflitos. Aquele com certeza não era seu plano.
- Não. - disse a mãe dela - Eu fico com a mamãe. Vocês dois ficam juntos. Ninguém ficará só.
Era seu modo de incluir Peter na família em fuga.
O avião saiu quase vazio, rigorosamente na hora. A clara impressão era de que a tripulação adoraria ter adiantado o horário, mas era impressionante a força que tinham as regras estabelecidas, mesmo nos momentos mais críticos. Ao que parecia, a Rússia não era um destino imaginado por muitos. Boa notícia.
O voo longo demais rendeu menos horas de sono do que deveria. As poucas dezenas de passageiros embarcados desobedeceram em massa os avisos de desligar celulares e consultavam a internet cada vez que o avião se aproximava do chão nas duas escalas europeias para reabastecimento em Lisboa e Zurique. Em Lisboa ninguém embarcou. Àquela altura o mundo inteiro já devia estar indo pro leste. Em Zurique, dois passageiros entraram enquanto Peter checava o voo de Moscou para Murmansk na internet.
- Luciana! - a mãe de Elisa gritou ao ver a filha aparecer na porta do avião com o marido vindo logo atrás. Elisa suspirou de alívio e calculou que se acabava ali sua sorte, que já tinha sido muita.

***

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