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22 de dez. de 2012

Onírico 3 - parte 2


  Na porta do prédio baixo e velho, a pausa diante dos degraus não foi hesitação. Não chegou a hesitar. Apenas pensou quão absurda seria sua atitude uma semana antes. Entretanto sua consciência era plena de que tudo havia mudado. Subiu os três degraus e quando ainda procurava o número 2 na lista de apartamentos no painel do interfone, ouviu uma movimentação no apartamento térreo à sua esquerda, um barulho de algo caindo, um resmungo de dor. E a porta se abriu de supetão. Peter usava ainda a mesma camisa branca do uniforme de garçom, pra fora da calça, e apertava a mão no joelho. Atrás dele, uma mesa de centro caída no chão e revistas espalhadas explicavam o ruído e o joelho. Elisa sorriu. Peter a puxou pra si e a beijou, e a pressa de ambos foi se revelando, quase não permitindo que chegassem ao quarto.
  Durante horas, alternaram sono e sexo, muitas palavras absurdas, nenhuma promessa. Nada podiam prometer. Eu podia até dizer que durante aquela noite esqueceram de tudo, mas por nenhum momento a previsão fatal saía de suas cabeças. Pelo contrário, aquela paixão desgovernada só era intensificada pela sensação de alarme e perigo que mantinha alertas seus instintos.
  Peter cochilava um sono leve, Elisa, de olhos abertos, pensava enquanto registrava o pequeno quarto desarrumado de Peter em sua mente. Olhou pra ele com uma espécie toda nova de afeto, algo muito mais basal, como se aquele homem fosse parte da preservação dela própria. Deitada de lado, virada pra ele, sentia os sentidos aguçados pelo extremo, e a velocidade vertiginosa dos seus pensamentos seria nauseante em outras circunstâncias. Lembrou do namorado que enrolava há cerca de três anos e a quem jamais escolheria pra passar um apocalipse, pensou no tipo de critério idiota que usava antes para escolher as pessoas. E o mais estranho é que agora, a escolha daquele homem ali, praticamente não tinha passado por critério algum. Ainda assim, poucas coisas já lhe tinham parecido mais certas.
  Ele abriu os olhos e ficou muito rapidamente desperto como um gato. Quando olhou pra ela, pareceu que procurava um pequeno espaço onde pudesse ser calmo e doce, mas o espaço era pequeno demais. Peter sentou-se na cama e os dois se abraçaram calados.
  - Você não teria um Aristóteles?
  Ele sorriu.
- Na mochila. - indicou com o dedo a mochila vermelha no chão do quarto - E um Platão.
  Ela sorriu. Peter foi até a porta e pegou a mochila preta de Elisa.
- Pesada. - ele comentou, como uma reprovação.
- Eu sei. - ela admitiu. - Eu dou conta.
Ele abriu a mochila dela. O conceito de privacidade era outro que caía por terra na noite-limite.
- Tudo bem. Só o essencial. - disse, brincando com a gaita na mão.
- Já comprei as passagens pra mim e pra minha família. - ela falou - Pra Moscou. Tirei todo o dinheiro da poupança.
- Vendi meu carro esta tarde. - ele disse. - Você pensou nos abrigos?
- Sim, nos abrigos antibomba. Não sei se servirão pra alguma coisa ou se serão solução pior. - um arrepio lhe percorreu, ao pensar num abrigo fechado inundando. - Nem sei se vamos conseguir chegar em algum. Mas foi o que me ocorreu.
- Pensei num submarino... - ele murmurou sorrindo, com os olhos distantes.
E então Elisa foi atingida por uma ideia.
- Masha!
- O quê?
- Masha, uma moça russa, de Murmansk, que eu conheci naquela comunidade dos ouvintes da Radio Science! Ela falou de um submarino, há alguns dias, o pai dela era da Marinha, está aposentado, acho que ele consegue acesso a um submarino, algo assim. Preciso trocar as passagens! - Elisa levantou da cama num pulo e correu pro notebook que estava ligado sobre a mesa. Numa aba, acessou a página da companhia aérea, buscando o destino Murmansk; noutra aba abriu o fórum de discussão do grupo Radio Science. Masha estava on-line!
Masha e Elisa haviam conversado diversas vezes durante esses dois anos. Elisa sabia que a jovem russa levava aquilo tudo ainda mais a sério do que ela própria. Masha se sentiu aliviada ao ver Elisa conectada. As duas conversaram rapidamente, Peter acocorado ao lado de Elisa.
O plano era simples, e não havia nenhuma garantia. O pai de Masha de fato conseguira acesso a um submarino não muito moderno, mas ainda bom, e Masha escolheria 28 pessoas que poderiam embarcar além dela e do pai. Basicamente seriam pessoas que ela conhecia, por ordem de chegada, dando preferência a jovens casais.
- Estamos dentro. - Elisa afirmou. - Eu sei que vamos conseguir.
Mas seu coração se apertava dolorosamente ao pensar em abandonar a mãe e a avó. E sem nem saber onde estaria a irmã àquela altura. Passou uma mensagem de texto para Luciana pelo celular, dizendo que iria tentar uma outra saída, que não podia garantir, mas que a irmã deveria tentar ir para Murmansk, desdobrando a passagem.
Mudou as quatro passagens, adicionando o destino final Murmansk. Já era manhã. Os dois se vestiram, pegaram as mochilas, alguns biscoitos na despensa e o pouco de água mineral que tinha no apartamento de Peter.
Entraram num táxi e foram para a casa de Elisa. No hall de entrada, Peter não conseguiu evitar a surpresa com o luxo da casa. Previsões cristãs e de outras proveniências estavam certas naquele ponto: ao pó voltarás. Sem rancor nenhum por ter vivido com dinheiro contado a vida toda, Peter segurava a mão daquela moça que só agora ele sabia milionária compartilhando com ela exatamente o mesmo destino: uma mochila, uma esperança rala e nenhuma garantia. Uma senhora descia a escadaria vestida num roupão amarelo.
- Elisa? - a expressão era desconfortável pela presença de um estranho àquela hora da manhã.
- Mãe, precisamos arrumar agora algumas roupas pra você e pra vovó.
- Filha, você tem certeza? A sua avó, coitada, pra que fazê-la ir também?
É claro que Elisa já tinha pensado nisso.
- Eu não sei se aguento o peso da culpa de não ter sequer tentado.
A mãe de Elisa não tirava os olhos do estranho. Ou melhor, das mãos dos dois, entrelaçadas.
- Elisa... - ela começou.
- Mãe, o Peter vai com a gente.
- E quem é o Peter?
- Sou eu. - ele respondeu, plenamente consciente de que não era isso que a mulher queria saber.
A mãe de Elisa suspirou.
- A Luciana foi pra Itália, buscar o Carlos. - Elisa continuou, e sua mãe pareceu alarmada ao ouvir que a filha mais velha estava comprando essa ideia. O celular de Elisa tocou no bolso de Peter. Ele entregou o aparelho a ela.
- Masha. - ela explicou. As duas conversaram em inglês muito rapidamente, e Elisa confirmou que já comprara as passagens pra Murmansk. Desligou.
- Masha já me deu as instruções de como chegar à base, a partir de Murmansk.
- Murmansk?? - a mãe exclamou. - Não era Moscou?
- Mãe, existe uma possibilidade... - os olhos de Elisa se encheram de lágrimas que começaram a escorrer pelo rosto com tanta rapidez que sua voz mal tremeu - ... de que eu e o Peter consigamos embarcar num submarino.
Peter apertou a mão de Elisa, e passou a mão livre no rosto dela. Em seguida tirou a mochila dos ombros dela.
- Sobe. Vai falar direito com a sua mãe. - ele olhou o relógio de pulso, antigo, de dar corda, que ele tinha lembrado de procurar numa caixa de sapato cheia de coisas do seu pai. À prova de fim de mundo.   - Temos algum tempo. Se sairmos daqui a uns 50 minutos, chegaremos no aeroporto com folga.
Ela assentiu.
- A cozinha é por ali. - ela indicou. - Pega um pouco mais de água para as outras mochilas.
Ele saiu e as duas subiram juntas.
Peter andou por um corredor grande até chegar a uma cozinha imensa, repleta de tantos aparelhos modernos que ele nem sabia pra que serviam. Abriu os armários e pegou duas garrafas leves. Encheu-as de água e colocou-as na sua mochila. Procurou chocolate e guardou alguns na mochila de Elisa. Andou pela casa devagar, com os olhos atentos e os ouvidos idem. Mas ele nunca iria escutar o que se passava no segundo andar daquela casa imensa.
- Elisa, você ficou doida?? Você acabou de conhecer esse homem, não foi? Eu nunca ouvi falar de Peter nenhum!
- Mãe... - Elisa se esforçava pra ter um mínimo de paciência praquele tipo de conversa. - Escuta. Sim, eu conheci o Peter ontem. Ele também sabe, ele também ouviu na Radio Science, assim como a moça russa que me ligou há pouco. Mãe, você sempre achou que eram cientistas sérios!
- Sim, até dizerem essas besteiras que fizeram você ficar doida!
- Até darem uma má notícia? Bom, a senhora é que sabe. Se quiser esperar sair na tv, como todo mundo, - Elisa chorava - problema seu. Eu vou embora, já fiz o que eu podia fazer.
Tirou do bolso duas das passagens que havia imprimido no computador de Peter e colocou em cima da mesinha do quarto de sua mãe.
- Se eu ainda puder dar alguma sugestão, levem água, biscoitos e chocolate, roupas quentes, meias, usem sapatos confortáveis.
A mãe olhava pra ela com outra expressão no rosto.
- Filha, isso é sério?
Elisa fez um gesto impaciente.
- Você acha que eu tô brincando?? - e saiu em direção ao quarto onde dormia sua avó. Tinha mais de 80 anos, mas Elisa era louca por ela, e sabia que aquilo era sua maior fraqueza naquele momento. Começou a arrumar roupas numa mochila sua. Ela já havia falado com sua avó na véspera, e por incrível que pareça, ela tinha se mostrado menos relutante do que a mãe.
- Vó? - ela falou baixinho, acordando a velha senhora magrinha.
- Bom dia, filha.
- É hora de ir, vó. A viagem que eu lhe falei ontem, lembra?
- Lembro sim.
- Nós vamos pra Rússia.
A avó sorriu.
- Eu sempre quis conhecer a Rússia.
Elisa sorriu e ajudou-a a se levantar.
- Já separei suas roupas. Vá ao banheiro, lave-se e vista isto.
Elisa esperou no corredor apenas alguns minutos. Antes de sua avó sair do quarto, sua mãe abriu a porta, vestida de calça jeans, camiseta e tênis.
- Eu não quero me arrepender disto. - ela frisou.
Elisa deu um suspiro de alívio.
- Eu adoraria pensar que posso me arrepender disto, mãe. Seria um milagre.
- Se for pra ir com essa cara amarrada é melhor nem ir. - disse a avó, que abria a porta do seu quarto, andando com dificuldade.
As três começaram a descer as escadas devagar, e Peter largou as mochilas perto da porta e subiu rapidamente os degraus de mármore.
- Posso? - perguntou à avó, com delicadeza.
A avó olhou pra Elisa com uma expressão aprovadora, e disse que sim, ele podia.
Peter apoiou a senhora em seu braço e ajudou a descer as escadas enquanto Elisa corria pra chamar um táxi.

***

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